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sexta-feira, junho 18, 2004

“No princípio era o verbo e, portanto, o som”, escreve, citando Jean During. No caso de Dulce Pontes, pelo meio veio ainda o teatro e para trás ficou o sonho de ser bailarina. Constante no caminho de uma voz onde se cruzam as origens da palavra com as raízes da portugalidade, só mesmo a música: a “ilha do seu Fado”. Por| Inês Marques


1. Como é que surgiu o “primeiro canto” – não aquele que dá o nome a um dos seus álbuns - mas da cantora Dulce Pontes?

Segundo a minha mãe conta acho que foi aos quatro anos. Na altura sabia o Hino Nacional todo de cor e gostava muito de o cantar, apesar de me fazer alguma confusão aquela parte dos “egrégios avós”.

2. E quando ou como é que tomou consciência de que era realmente à música que se queria dedicar?

Não houve propriamente um momento, foi progressivo. Desde pequena que senti a necessidade de me expressar de diferentes formas, mesmo que para isso tivesse que estragar a mesa da sala por andar sempre a arrastá-la para dançar. Lembro-me da minha descoberta de que podia reproduzir os sons que ouvia num pequeno xilofone, de andar à procura. A primeira música que consegui aprender foi o “Malhão Malhão”. Depois veio o “Parabéns a Você” e a descoberta dos meios-tons. A seguir a minha mãe arranjou-me um órgão, e entretanto comecei também as aulas de piano com a Lígia Serra. Cheguei mesmo a fazer o quarto ano do Conservatório como externa enquanto, paralelamente, frequentava a escola de dança, com a Anabela Gameiro.

3. Aliás chegou mesmo a ter o sonho de ser bailarina…

Sim, mas era complicado porque a escola onde eu andava era no Montijo e não me dava currículo. Ainda assim foi extremamente importante no meu percurso. Serviu para me dar noções essenciais, como a de espírito de sacrifício, expressão corporal. Tive a melhor formação - na minha infância e parte da adolescência - que alguma vez poderia ter tido para o tipo de vida que tenho hoje e que começa aos 18 anos com o famoso teste de voz.

4. 16 anos depois desse momento, quais foram os “Caminhos” que a sua música percorreu?

Bem, penso que foram alguns. Já há uma “árvorezinha”, cujo tronco está inevitavelmente ligado às raízes da minha nacionalidade. E isso significa não só Fado mas também Folclore, música popular da escola do Zeca Afonso, medieval e galaico-portuguesa. É esse o espectro de um manancial mais infinito de possibilidades, a partir do qual eu gosto de reinventar. Aquilo de que me fui apercebendo ao longo do caminho foi que o que realmente importa não é reproduzir, e sim procurar deixar a marca do meu tempo, daquilo que vivo, sinto e sou.. Sempre com verdade interior e respeito por essa matriz. Claro que no crescimento dessa árvore existem opções e momentos cruciais, mas é por isso que tem esta forma e não outra. O que me agrada é sentir que consegui criar raízes fundas, permanecer e ir construíndo. Esse é o meu objectivo.


5. Um dos momentos, para além da participação no Festival da Canção, que foi importante no desenhar inicial dessa árvore foi subir ao palco do Casino Estoril…

Estive lá um ano e apesar de ter sido muito benéfico em termos disciplina cheguei a um ponto em que já não suportava lá estar, porque não só se torna repetitivo como tão pouco era o tipo de música pelo qual me prefiro expressar. O único dia que tivemos de folga foi a noite de Consoada logo, em termos de trabalho ensinou-me bastante, até porque aconteceu em simultâneo com o “Regresso ao Passado”, o programa apresentado pelo Júlio Isidro..

6. Depois dessa experiência começou a pisar outro tipo de palcos – teatros, auditórios…Como é que se dá a passagem do Casino Estoril para outras salas?

Eu estava no Casino Estoril apenas como convidada, pelo que o salto não se dá obviamente do nada. Com o Festival da Eurovisão tive a oportunidade de começar a gravar em português e acaba por surgir o meu primeiro disco que, apesar de não ser o que eu queria fazer, foi importante enquanto tal. Depois, quando parti para o “Lágrimas”, tinha já uma ideia definida do que pretendia e, portanto, prometi a mim mesma que ou era assim ou desistia. E a partir do momento em que o fiz a minha carreira despoletou. Estávamos em 1993 e aquilo que muita gente apelidou de “suicídio artístico” – cantar temas da Amália na altura era quase um sacrilégio – acabou por se revelar precisamente o oposto.

7. Mais do que uma forma de vida pode-se dizer que a música é a “ilha do seu Fado”, tal como canta no álbum que tem por nome, precisamente, “Caminhos”?

Sim, sem dúvida. A música é a principal porta para o coração. Existem outras, mas esta é sempre a primeira porque a música, no fundo, é a emoção humana. Como tal, fazer o que faço é uma dádiva. Cantar é algo que me ultrapassa. Nunca penso na música ou na carreira artística como uma forma de enriquecer ou ser reconhecida, de alimentar o meu ego, e sim como este dom extraordinário de um sentir desmedido.


8. Depois de trabalhar um pouco por todo o mundo, em palcos e com cantores de nacionalidades diferentes, esse fado continua a ser o “Fado Mãe”, “Fado Português”?
Continua, sempre. Precisamente porque serei sempre portuguesa. Durante todo este tempo e, mesmo actualmente, em que por causa do “Focus” canto mais temas estrangeiros, o Fado está sempre comigo. É algo que me tem acompanhado ao longo de todos os caminhos. No “Primeiro Canto” procurei fazer algo um pouco diferente mas precisamente para não ser oportunista. Seria muito fácil ter ficado com esse tipo de “carimbo”, digamos assim. Para além disso, acredito que é necessário tempo de vida para se poder interpretar verdadeiramente o Fado. É preciso um exercício de nudez, de fraqueza, despirmo-nos de qualquer tipo de maneirismo. Porque o Fado não é uma coisa estagnada, é um exercício de liberdade, sem o qual não vivo. Cantá-lo é quase como pronunciar uma oração. Não sinto nada parecido com outro género musical.

9. O “Focus” surge em 2003 e, contrariamente aos anteriores, não é um trabalho a solo. Como é que surgiu esta parceria com o Maestro Ennie Morricone?

Foi em 1995. Um amigo do Maestro comprou o “Lágrimas” e levou-lho para ele ouvir, já que ele andava à procura de uma cantora portuguesa para interpretar o “Coração”. Foi uma grande coincidência porque eu andava precisamente à procura da banda sonora do “Era Uma Vez na América” – que é da sua autoria - e pouco depois de a encontrar, recebo um fax do Maestro. Na altura até pensei que fosse uma brincadeira. A seguir à gravação deste tema continuámos a trabalhar juntos – tenho sido sempre convidada nos seus concertos - e foi-se desenvolvendo uma relação profissional que, como ele diz, começou com fogo até chegar a um grande incêndio, que se chama “Focus”.

10. Qual é o balanço que faz dessa experiência e dos espectáculos que têm realizado em conjunto?

Estar com ele é uma aprendizagem constante. Para além disso uma orquestra é um céu. No entanto preciso da liberdade dos meus espectáculos, para poder cantar música portuguesa, seguir o meu caminho. Ainda assim este disco faz parte dele, até porque o Maestro compôs para o “Focus” seis temas originais de inspiração portuguesa. Isso vem enriquecer imensamente a história da nossa música, até porque estamos a falar de um dos maiores nomes da orquestração e composição contemporânea.

11.No próximo dia 28 terá oportunidade de retribuir os convites do Maestro, já que será ele o seu convidado no concerto que dão em Lisboa. Como é que surgiu esta ideia?

Surgiu a partir da organização do Euro2004 que, como o campeonato coincidia com as Festas de Lisboa, pediu à EGEAC que organizasse um concerto de grandes proporções. Ainda bem que se lembraram de nós, porque, por mais agradável que seja cantar noutros países, nada pode ser tão especial para mim como poder, finalmente, realizar o desejo de trazer o “Focus” a Lisboa. Agora posso oferecer essa magia às pessoas que me têm acompanhado incondicionalmente ao longo de todos estes anos. Mais ainda sendo entrada livre.

12. E se “no princípio era o verbo e portanto o som”, depois de pelo meio terem surgido experiências noutras áreas, como a representação, hoje é a música e só a música ou algo mais?

Não sei bem, mas tenho vontade de voltar ao teatro. Tive uma proposta do Maestro Horacio Ferrer, o grande companheiro do Astor Piazzola, para fazer a “Maria de Buenos Aires” e se calhar vou aceitar. Mas não quero atropelar o projecto que pretendo fazer a seguir, sobretudo se entrar no Fado. Ás vezes é difícil conjugar todas estas coisas coma vida familiar e ainda ter tempo para o meu filho, mas se conseguir geri-las aceito.

13. E no fim, será a música ou o som num sentido mais lato, onde caiba também o teatro?


Eu gostaria que fosse uma comunhão. Uma compreensão entre todas as manifestações da palavra e, portanto, do som. Isso possibilitaria aquilo que considero uma maior proximidade entre artes e também pessoas. Seria uma imagem bonita, todos de mãos dadas, a produzir o mesmo som.








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